O final da aula, a volta pra casa, tudo parecia ter preguiça de correr. Apesar de uma vermelhidão nos bochechas que me acompanha desde nova, a timidez nunca me impediu de ser aquela criatura na sala que fica com o braço esticado: "eu sei! eu sei!" (Sim, me entreguei agora). Adaptações à maturidade à parte, aquele espírito do "eu sei!" ainda continua em mim. Segunda , no entanto, eu pensei muito mais do que falei. Engasgada com um choro na garganta desde a tontura do final daquela experiência. É como se a coleira ainda estivesse lá, prendendo, dessa vez, uma vontade deliberadamente controlada de colocar algo pra fora. Pensava, sentia, ardia, doía muita coisa. Inquieta com a percepção de que, nas duas últimas criações para a aula, eu tentava alcançar algo que não conseguia. Os olhos da professora viram isso também. A construção desta segunda refletia conscientemente uma lembrança que compartilhei no início daquele encontro: eu fui uma criança gordinha, com uma barriga nada discreta e bochechas redondas. Fiz capoeira, natação e balé e, apesar dos estereótipos, o peso atrapalhava mesmo era a natação. Era esperado o momento fatídico em que eu tinha que sair da piscina e, ao contrário de tooodos os meus coleguinhas, não conseguia subir sozinha na borda. Trabalho de equipe: duas pessoas em cima me puxando pelos braços e duas embaixo me empurrando pela bunda... Cena, no mínimo, ridícula. Hoje eu rio da minha bobagem, mas é natural assumir que morria de vergonha toda vez que a aula acabava e a borda da piscina do Clube Português me olhava com ares de desafio. De uma aula para outra, quase vinte anos depois. É incrível como o ser humano acha que desapegou do seu passado mas... Ao passo que experimentava aquela condição de tentar escalar os cubos de madeira que se encontravam num canto da sala de dança, mais dificuldade, mais vontade, mais cansaço, mais esforço eu tinha. E eles tinham apenas 50cm de altura... "Vai, Laili, você consegue!" Eu parecia ouvir as minhas amigas com seu apoio moral e respondia com um corpo tenso, suado, arranhado e respiração ofegante. Caí, bati, me joguei. A conquista parecia não chegar nunca e quando eu finalmente encontrava o outro lado da fileira de cubos, dava uma contraditória meia-volta e começava tudo de novo. Mab apresenta a coleira. "Uma coleira normal, o máximo que pode fazer é assar...", pensei. Acontece que a simpática coleira tinha espetos de metal apontados para dentro, para o pescoço. Parecia mais um instrumento de tortura do que de mera manipulação. Os colegas foram crescendo coragem para experimentar enquanto a minha ia diminuindo. A cabeça funcionava exageradamente: "Mas eu faço uns movimentos bruscos, imprevistos... Eu subo, caio, subo, caio de novo... Ela vai me machucar!" Olho pro lado, pro outro... "Eu vou.". "Você é maluca", pensei... "Ou vai sair uma merda porque se controlou demais ou vai sair toda fudida..." (Perdão pelas palavras, mas o calor frio do momento pedia vários palavrões...). Coleira, suor, nervosismo, cubos. Fui. A escalada começou tímida. À medida que eu me acostumava com o elemento e confiava nos meus manipuladores, estes sentiam-se mais à vontade para interferir nas minhas ações. Surgiu um conflito difícil entre a decisão deles em me manter longe dos cubos e a minha incessante necessidade de subir nos mesmos. Eu tentava e doía. Mudava de lado, de jeito. Sem jeito. Algo me prendia àquelas conquistas... Talvez achasse que tinha algo para provar... Talvez um apego à minha sempre insatisfação com o corpo e o quanto que ele reflete minha insatisfação comigo mesma: basta dizer que sou uma sanfona movida a relacionamentos; engordo quando namoro, emagreço quando separo - sem exceções. No último rompimento consegui perder nada menos que seis quilos em dois meses... E, talvez, aqueles cubos fossem todas as minhas frustrações com a vida (trabalhos imprecisos, dinheiro inexistente, planos pouco ambiciosos, amores dolorosos, exercício precário de ser mãe) e alcançá-las fosse uma tentativa de torná-las menores... Terminei no outro extremo da sala, longe dos cubos, de pé. Olhos mareados, corpo tremido, cabeça confusa e coração apertado.
É incrível ler um relato desses e se identificar tanto! Nao pelas mesmas coisas vividas,mas pelos mesmos sentimentos, frustaçoes, vontades.É extremamente gratificante ter uma pessoa tao entregue, competente e disposta como você em uma processo tao incial pra mim de mediaçao de uma aula...e tao importante percerber que tudo isso descrito vem de um estímulo de um processo criativo artístico, é como se ficasse mais claro do que nunca o que as possibilidades da arte na vida humana, nas relaçoes e nas subjetividades sao incrivelmente infinitas! Muito obrigado por esse momento aqui e os tantos outros que estamos vivendo...paro por aqui com os olhos molhados e muita vontade de seguir...
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